terça-feira, 19 de julho de 2011

A Grande Lula na beira da praia


Outro dia escrevi um artigo sobre a descriminalização da maconha. Pra quê? Recebi emails de todos os grotões de maconheiros e caretas. Uns me aplaudindo pela minimização da erva como droga forte, outros me xingando por induzir a sociedade ao reino de Satã. É impressionante como essa droga ridícula tem uma pecha horrenda. Acho que o nome "maconha" evoca "medonho", tem um tom para baixo, como acorde do diabo ("diamba" também...), pongo, aliamba, riamba, todos os nomes com um eco africano, do fundo de senzalas.

Não sou maconheiro porque não posso ficar doidão, escrever e falar na TV. Houve uma época em que os cineastas "underground" filmavam muito loucos e achavam tudo genial. Quando iam ver o copião, era tudo uma bosta. Daí, um amigo cunhou a frase eterna: "Filmou louco, tem de montar louco e assistir louco...".

Mas, se garanto que a diamba não é uma droga forte, é porque já tomei coisa mais violenta. Em 69, na época mais pesada da ditadura, eu tomei vários ácidos lisérgicos, sim. LSD. A coisa é fortíssima, é uma psicose induzida. Uma vez tomei um ácido numa praia deserta perto de Angra. Já tinha tomado outros que eram a maravilha pura, "lucy in the skies with diamonds". Mas aí, tive a chamada "bad trip", viagem inesquecível com uma horrenda angústia de morte, que eu reconto para vocês. Já mencionei este terrível evento, uma vez.

Muito bem. Engoli o "sunshine" (era o nome da pílula de LSD) e esperei na praia.

De repente, a paisagem começou a tremer como gelatina. Os morros em volta dançavam rumba. Eu pensei: "Bateu!".

Fui andando pela praia deserta e sentei à beira d"água. As ondas quebravam em câmera lenta, como se o mar fosse de chumbo líquido.

Eu olhei para minhas pernas nuas dobradas em "xis" e elas começaram a murchar e inchar, pulsando, como se tivessem vida independente de meu corpo; minhas pernas ficavam quase transparentes e finas como tentáculos de um extraterrestre ou de uma grande lula ali naufragada na beira do mar. Assustei-me.

A viagem continuou. Minhas pernas eram tentáculos e meus braços flutuavam trêmulos diante do mar. Eu comecei a me sentir como um embrião abandonado na praia, sem pai nem mãe.

Subitamente, tudo ficou em preto e branco e, de dentro de uma pequena lagoa, uns urubus levantaram voo em minha direção, lentíssimos, com as asas batendo como chumbo, flap flap, e eu pensei com pavor: "Estou perdido, não haverá um só lugar onde eu tenha paz...". A angústia de morte se instalou como nunca e eu vi então, lambidos pela maré, uns soldados deitados me apontando fuzis; eu sabia que eram troncos de árvore ali jogados, eu sabia, mas, mesmo assim, eu "via" realmente os soldados me apontando as armas como se estivessem desembarcando para me fuzilar. Um deles tinha as bochechas do gen. Costa e Silva. Eu buscara um "desbunde" alegre e florido, mas saquei ali que a devastação de 68 era um sinistro "corte de onda".

Então vi, no outro canto da praia, uma mulher morta, em decomposição, meio comida de peixes, uma mulher que podia ser um banco de areia, mas que era uma mulher morta sim, me olhando com órbitas vazias, e eu murchando e inchando, os braços e pernas pulsantes.

Resolvi me salvar e fugir para um lugar qualquer, onde eu tivesse paz. E a grande lula de pernas moles correu até uma tendinha de beira de estrada, onde havia uns dez matutos velhos tisnados de sol que me olharam desconfiados. Banquei o careta, bem "normal" - tanto que chamava a atenção dos pescadores.

Dentro da venda, já estava um colega meu de viagem, um "hipongão" alto e magro vestido num improvável casaco de ovelha, que delirava num comício sobre a vida e a morte para os boquiabertos pescadores, de cachaça na mão.

Aí, eu entendi com horror que a Política ia virar um piada ridícula dali para a frente, um pesadelo cômico, e entendi que hippie no Brasil não era um florido esperançoso, como nos países ricos; hippie, aqui, era um espécie de exilado mental, um cassado da mente. Entendi que o "desbunde" era perder o gás, perder a pose, perder a bunda; o desbunde não tinha o sentido new age de hoje.

A paisagem continuava a tremer e a vendinha de beira de estrada ficou insuportável, pois os matutos pareciam rir de mim com escárnio e eu fugi e voltei a andar pela praia e comecei a ouvir um fino e agudo ruído como uma broca e "vi-ouvi" a broca de uma das mais sutis torturas do DOI-Codi: um dentista militar abria o dente do infeliz e botava a broca direto no nervo vivo (o que faz você denunciar a própria mãe) com seus gritos abafados por Roberto. Carlos a todo volume cantando As Curvas da Estrada de Santos.

Passei por outro companheiro de viagem, deitado dentro da lama verde do manguezal de onde voaram os urubus de chumbo, quietinho no brejo, só com a cabeça de fora: "Maior barato", me disse ele; "Barato e guerra", pensei eu.

E os urubus voltavam, batendo as asas pesadas e eu entendi que o Brasil estava dividido em "maior barato" e heróis suicidas. O meu companheiro da lama passou gritando num incontrolável ataque de lágrimas, discursando sobre a necessidade de os peixes se revoltarem contra os pescadores e eu sentei de novo na areia molhada e as ondas me lambiam as pernas de lula e minhas mãos de polvo e eu me entreguei então à angústia total, no mais fundo desespero que senti na vida. Eu intuía, ali na praia, que alguma coisa se fechara para sempre no Brasil.

E digo isso hoje, 40 anos depois, ainda com frio na alma. Os milicos se foram. Ficaram os ladrões da República. É tudo verdade.

Por Arnaldo Jabor

Fonte: Estadão
até breve

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